Rede de Museologia Social do Rio de Janeiro: uma experiência de diagnóstico e cartografia

Rede de Museologia Social do Rio de Janeiro: uma experiência de diagnóstico e cartografia

Mario Chagas[1], Nathália Lardosa[2], Luísa Calixto[3]
luisa.calixto@hotmail.com
O surgimento da Rede de Museologia Social do Rio de Janeiro
            No cenário dos movimentos sociais que eclodiram no Brasil nos últimos quinze anos, a museologia social vem alcançando destaque e vem sendo praticada como um processo de afirmação por meio da memória, onde diversas experiências surgiram e se consolidaram pelo país. Nessa conjuntura, retomando planos e projetos anteriores, datados de 2008, foi criada em outubro de 2013, no Museu da República, a Rede de Museologia Social do Rio de Janeiro (REMUS-RJ), numa reunião chamada por e para atores sociais, instituições e experiências singulares e criativas.
            A REMUS-RJ é formada por museus, ecomuseus, pontos de memória, pontos de cultura, organizações não governamentais, instituições de ensino, profissionais, estudantes e pesquisadores cujas práticas se compreendem no âmbito da denominada museologia social e que através de seus modos singulares desempenham um papel fundamental na educação, na resistência e no empoderamento de suas comunidades.
            Para os integrantes da Rede, a “museologia social (...) está comprometida com a redução das injustiças e desigualdades sociais; com o combate aos preconceitos; com a melhoria da qualidade de vida coletiva; com o fortalecimento da dignidade e da coesão social; com a utilização do poder da memória, do patrimônio e do museu a favor das comunidades populares, dos povos indígenas e quilombolas, dos movimentos sociais, incluindo aí, o movimento LGBT, o MST e outros”.  (CHAGAS e GOUVEIA, 2014, p.17).


Princípios norteadores da REMUS-RJ
            Os participantes da REMUS-RJ estão em sintonia com os princípios da Mesa Redonda de Santiago do Chile e seus desdobramentos, assumindo que a museologia deve utilizar de todo o seu potencial transformador para contribuir e tornar-se ferramenta ativa (devir museal) nos processos de mudança na sociedade. Nesse sentido, eles concordam que:

“(...) o museu é uma instituição a serviço da sociedade, da qual é parte integrante e que possui nele mesmo os elementos que lhe permitem participar na formação da consciência das comunidades que ele serve; que ele pode contribuir para o engajamento destas comunidades na ação, situando suas atividades em um quadro histórico que permita esclarecer os problemas atuais, isto é, ligando o passado ao presente, engajando-se nas mudanças de estrutura em curso e provocando outras mudanças no interior de suas respectivas realidades nacionais”[4].

            Os participantes da REMUS-RJ também estão em sintonia com os princípios orientadores da Declaração de Quebec e por isso compreendem que:

“Ao mesmo tempo que preserva os frutos materiais das civilizações passadas, e que protege aqueles que testemunham as aspirações e a tecnologia atual, a nova museologia – ecomuseologia, museologia comunitária e todas as outras formas de museologia ativa – interessa-se, em primeiro lugar, pelo desenvolvimento das populações, refletindo os princípios motores da sua evolução ao mesmo tempo que as associa aos projetos de futuro”[5].

            Como foi indicado, a REMUS-RJ foi criada em outubro de 2013, dois meses depois da realização da XV Conferência Internacional do Movimento Internacional para uma Nova Museologia (MINOM), realizada em agosto, na cidade do Rio de Janeiro, com base no Museu da República, no Museu da Maré e no Museu de Favela. A rigor, a XV Conferência Internacional do MINOM serviu como dispositivo articulador, mobilizador e estimulador da REMUS-RJ que, por isso mesmo, foi criada em diálogo com os princípios firmados e afirmados na Declaração MINOM Rio 2013, que são os seguintes:

“A). Reafirmar os princípios anunciados nas declarações de Santiago do Chile, 1972, e Quebec, 1984;
B) Quebrar hierarquias de poder, a fim de que surjam novos protagonistas de suas próprias memórias;
C) Compreender os museus comunitários como processos políticos, poéticos e pedagógicos em permanente construção e vinculados a visões de mundo bastante específicas;
D) Dar relevo à atuação dos museus sociais, dos museus comunitários, dos ecomuseus, dos museus de favela, dos museus de território, dos museus de percurso e dos espaços museais. Todas essas organizações tiram e põem, fazem e desfazem suas memórias, sentimentos, ideias, sonhos, ansiedades, tensões, medos e vivem sua própria realidade, sem pedir permissão às autoridades estabelecidas;
E) Reconhecer que todos esses museus e processos museais assumem seus próprios “jeitos” de musealizar e se apropriam e fazem uso dos conhecimentos do modo que lhes convém;
F) Colocar em destaque a compreensão de que a museologia social consiste num exercício político que pode ser assumido por qualquer museu, independente de sua tipologia”[6].


Iniciativas e experiências de memória e museologia social    
            A ampliação das experiências e iniciativas de memória, de caráter museal, no município do Rio de Janeiro e em outros municípios do Estado, bem como a identificação e o mapeamento dessas iniciativas e experiências produziram um desafio especial, qual seja, o de contribuir para a articulação sistemática, para a produção de intercâmbios e para a criação de parcerias, visando o desenvolvimento de ações que resultem em benefícios comuns.
            Entre as iniciativas e experiências que se articularam em torno da REMUS-RJ, encontram-se as seguintes: Museu Sankofa da Rocinha , Museu Vivo de São Bento, Museu de Favela, Museu da Maré; Ecomuseu Nega Vilma, Museu do Horto, Ecomuseu de Sepetiba, Ecomuseu Amigos do Rio Joana, Memórias do Cerro Corá; Rede Fitovida, Museu de Arqueologia de Itaipu, Território Sagrado de Boca do Mato de Cachoeira de Macacu, Sociedade Musical Euterpe Lumiarense, Museu da República, Ecomuseu Rural de Barra Alegre, Museu das Artes Lúdicas da Casa da Rua do Amor, Museu das Artes Cênicas do Grupo Foco, Ecomuseu de Santa Cruz, Espaço Museológico Boi Raízes de Gericinó, Mulheres de Pedra e outros[7].
            Por tudo isso, a Rede chamou para si o objetivo de conectar e promover a troca de experiências e saberes, cooperações e ações conjuntas entre as diversas iniciativas espalhadas pelo território do Estado do Rio de Janeiro. Potencializando a voz e a força de cada iniciativa que a compõe, a REMUS-RJ compartilha a compreensão de que fortalecer o outro também é uma forma de se fortalecer, e, além disso, acredita na memória, na poética, na política, na educação, na ética, na luta e na resistência como formas de libertação.
            Nos últimos dois anos a REMUS-RJ vem trabalhando com o princípio da horizontalidade e tem realizado reuniões sistemáticas (mensais ou bimestrais). Nesses encontros uma iniciativa participante é escolhida para receber o coletivo, apresentar a sua história, seu território, seus programas, projetos, práticas e seus avanços e limitações atuais.
                Por meio dessas reuniões a Rede se conhece melhor, se fortalece e mantem a proposta de se descentralizar, tanto política, quanto econômica e geograficamente. Tendo isso como ponto de partida as pautas e as necessidades do momento são expostas e discutidas, elas recorrentemente dizem respeito: às políticas públicas, a exemplo da Lei Cultura Viva que tramita nas esferas federal, estadual e municipal ; às linhas de fomento no âmbito público e privado; à divulgação das atividades dos grupos participantes da Rede; às necessidades de contínua estruturação da própria Rede. Ocorrem também reuniões em menores espaços de tempo, com foco mais prático, abertas a todos que queiram se envolver, onde estão presentes os principais articuladores, que avaliam e preparam os encontros e dão desdobramentos práticos aquilo que é encaminhado. As reuniões costumam ser registradas em atas que são disponibilizadas para que todos os componentes da Rede acompanhem e participem dos processos, das pautas discutidas, bem como das decisões e deliberações.

Construindo parcerias e intercâmbios multilaterais
            De modo direto ou indireto, a REMUS-RJ também tem estimulado a formação de novos coletivos, como a Rede São Paulo de Museologia Social, criada em 2014, após o intercâmbio de seus integrantes com os participantes da Rede do Rio de Janeiro.
            Um ponto forte, entre outros, deve ser destacado, a Rede conta com parcerias institucionais bem expressivas, tais como: o Sistema de Museus do Estado do Rio de Janeiro (SIM-RJ), ligado à Secretaria Estadual de Cultura (SEC); o Museu da República (MR), ligado ao Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM) e com a Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), através do Curso de Museologia.
            As ações da Rede têm contribuído para estimular as parcerias bilaterais e multilaterais entre os atores que dela participam. Nesse sentido, as articulações entre o Museu Vivo de São Bento e o Espaço Museológico Boi Raízes de Gericinó[8], são exemplares. Além disso, não se pode deixar de reconhecer que o Encontro realizado em Cachoeira de Macacu (RJ), foi de grande importância para o fortalecimento do Museu da Umbanda e para a consolidação do projeto que hoje é conhecido como Território Sagrado de Boca do Mato.
            A REMUS-RJ também participou e continua participando da resistência e da luta pela permanência do Museu da Maré e, nesse sentido, contribuiu com ações concretas contra o despejo do Museu, participou de reuniões e atuou na elaboração de Carta de Apoio ao Museu da Maré.
            Um dos grandes focos da REMUS-RJ é a formação e a capacitação profissional. Por isso mesmo, nos dois últimos anos a Rede investiu, por conta própria, e contando com a solidariedade dos parceiros, na realização de Oficinas nas seguintes áreas: Introdução à Museologia Social, Museu, Memória e Cidadania na Diversidade Cultural e Inventário Participativo. No ano de 2014 a Rede também participou na elaboração de um dossiê na Revista Cadernos do CEOM, onde foram reunidos textos inteiramente dedicados à Museologia Social que visam auxiliar na difusão do tema.

Mapeamento e diagnóstico
            O Diagnóstico, ferramenta criada pelo coletivo da Rede para mapear os grupos que a compõem, surgiu do entendimento e da necessidade de sistematizar o conjunto de saberes, práticas e histórias e de identificar as necessidades que cada coletivo apresenta, potencializando as capacidades de cooperação.
            O mapeamento das iniciativas faz um levantamento das informações mais importantes e possibilita um acompanhamento das ações dos grupos. A necessidade de realizar essa pesquisa foi percebida pela Rede desde suas primeiras reuniões, e vem sendo colocada em prática desde maio/junho de 2015.
            Para a realização do Diagnóstico foi elaborado um formulário, construído de forma coletiva, tendo como base o Cadastro Fluminense de Museus e o formulário do Projeto de Extensão Mutação – UNIRIO, levando em consideração as especificidades dos museus praticantes e comprometidos com a denominada museologia social, a partir das experiências dos coletivos presentes nas reuniões da REMUS-RJ.
  
Projeto de Extensão MUTAÇÃO
            A experiência do Diagnóstico vem sendo realizada em parceria com o Projeto de Extensão “MUTAÇÃO -  Museologia, Turismo e Ação” - da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO, que utiliza a metodologia de pesquisa-ação, que tem como objetivo desenvolver o conhecimento através da prática.
            Esse projeto vem sendo desenvolvido desde 2012, atuando primeiramente em parceria com o Museu de Favela - MUF, e no ano de 2015, a partir de participação em reuniões da Rede de Museologia Social, sentiu necessidade de ampliar suas ações para outros museus, entre os quais incluem-se: Museu Vivo do São Bento (Duque de Caxias), Museu Sankofa (Rocinha), Ecomuseu Nega Vilma (Santa Marta), Museu do Horto (Jardim Botânico - Horto), Museu da Maré (Maré), Museu de Favela (Pavão, Pavãozinho e Cantagalo) e Ecomuseu Amigos do Rio Joana (Andaraí).
            As bolsistas do projeto têm como principal responsabilidade a aplicação do Diagnóstico da Rede nos museus acima citados, além de acompanhar a aplicação e desenvolvimento das atividades do mapeamento no estado do Rio de Janeiro.
Metodologia
            As iniciativas que fazem parte da rede estão sendo visitadas e o diagnóstico é apresentado em forma de perguntas numa conversa que é registrada através da filmagem. Destacamos a decisão de utilizar a metodologia do registro oral como uma forma importante para o trabalho em rede e para a prática da museologia social, onde os relatos se tornam mais ricos e ampliam-se as possibilidades de escuta dos entrevistados. Dessa forma são gerados dois materiais que serão trabalhados: o formulário preenchido a partir da transcrição das entrevistas e a filmagem realizada.
            O trabalho de Mapeamento (cartografia) e de Diagnóstico realizado pela REMUS-RJ, associado ao Projeto de Extensão da UNIRIO tem o objetivo de gerar contribuições entre as quais destacam-se:
·         Identificar necessidades específicas de cada grupo e, na medida do possível, buscar atendê-las.
·         Estimular a troca e o intercâmbio de saberes e fazeres entre as próprias iniciativas, potencializando a cooperação.
·         Produzir material útil para as atividades de pesquisa, divulgação e ensino.
·         Realizar documentários audiovisuais por meio dos quais aspectos significativos das iniciativas e experiências serão registrados.

“A relação com a Rede de Museologia Social do Rio de Janeiro é riquíssima e dá oportunidade de estarmos trocando conhecimento e experiências com outros museus”[9].
           
            Nos últimos dois anos a Rede teve um importante crescimento político. Suas ações vêm se consolidando e se constituindo como importantes esforços de estruturação. Para isso, o Diagnóstico é uma ferramenta que vem sendo aplicada e que permitirá à Rede olhar para si mesma, atender às suas necessidades e ainda, de forma mais eficaz, alcançar, seus objetivos.
            A REMUS-RJ compreende que é necessário investir em sua estruturação e consolidação. Esse caminho possivelmente contribuirá para o seu fortalecimento, bem como dos grupos que a compõem, incluindo as suas múltiplas formas de expressão, expansão e resistência.
            A memória e o patrimônio são dispositivos pelos quais os seres humanos se expressam no mundo em termos políticos, poéticos e pedagógicos. Não há nada de novo e muito menos de natural nessa construção. Os dispositivos de memória e patrimônio estão em movimento permanentemente e contribuem para a promoção de tempos e culturas diferentes. Por fim, cabe destacar, juntamente com os autores coletivos R.M. SILVA e R. de JANUÁRIO (2014, p.418), que “(...) a Rede se constitui fundamentalmente do mesmo sentimento que impulsiona vivamente cada um dos seus participantes: o desejo de que as memória, o patrimônio e os museus não sejam espaços de reprodução da exclusão, mas sim, da representação da diversidade”.



Referências
CHAGAS, M. S.; GOUVEIA, I. Museologia social: reflexões e práticas (à guisa de apresentação). Cadernos do CEOM, v. 27, p. 9-22, 2014.
CHAGAS, M. S.; VARINE, H. Entrevista de Hugues de Varine concedida a Mario Chagas. Cadernos do CEOM, v. 27, p. 239-248, 2014.
JANUÁRIO, R. (Org.); SILVA, R. M. (Org.) Rede de Museologia Social do Rio de Janeiro. Cadernos do CEOM, v. 27, p. 415-420, 2014.
SANTOS, Maria Célia Teixeira Moura. Reflexões sobre a nova museologia. In: Cadernos de Sociomuseologia. Reflexões museológicas: caminhos de vida, V. 18, N. 18, p. 93-139, 2002.
SILVA, F. Sobre a Rede de Museologia Social do Rio de Janeiro. Disponível em: <https://redespmuseologiasocial.files.wordpress.com/2014/08/texto_rede_rj_felipesilva2.pdf>. Acesso em: 26 de ago. 2015.
VARINE, H. O museu comunitário como processo continuado. Cadernos do CEOM, v. 27, p. 25-35, 2014.
MESA-REDONDA DE SANTIAGO DO CHILE, ICOM, 1972. Disponível em: <http://www.revistamuseu.com.br/legislacao/museologia/mesa_chile.htm>. Acesso em: 26 de ago. 2015.
DECLARAÇÃO DE QUEBEC. Princípios de base de uma nova museologia, 1984. Disponível em: <http://www.revistamuseu.com.br/legislacao/museologia/quebec.htm>. Acesso em: 26 de ago. 2015.
XV CONFERÊNCIA INTERNACIONAL DO MINOM. Declaração MINOM Rio 2013. Disponível em: < http://www.minom-icom.net/files/declaracao-do-rio-minom.pdf>. Acesso em: 26 de ago. 2015.


[1] Poeta, museólogo e doutor em ciências sociais. Professor da Unirio, Coordenador Técnico do Museu da República, participante da REMUS-RJ.
[2] Estudante de Museologia da Unirio, bolsista de extensão do projeto “MUTAÇÃO: museu, turismo e ação”, participante da REMUS-RJ.
[3] Estudante de Museologia da Unirio, bolsista de extensão do projeto “MUTAÇÃO: museu, turismo e ação”, participante da REMUS-RJ.
[4] Ver Mesa redonda de Santiago do Chile (1972). In: http://www.revistamuseu.com.br/legislacao/museologia/mesa_chile.htm (última consulta 11/10/2015).
[5]  Ver Declaração de Quebec (1984). In: http://www.revistamuseu.com.br/legislacao/museologia/quebec.htm (última consulta, 11/10/2015).
[6] Ver Declaração MINOM RIO 2013. N: http://www.minom-icom.net/files/declaracao-do-rio-minom.pdf (última consulta, 11/10/2015)
[7] A lista é incompleta. A Rede é dinâmica. Aqui estão apenas alguns exemplos.
[8] Ver https://www.facebook.com/RaizesdeGericino e https://www.facebook.com/auricelia.merces?fref=photo (última consulta – 10/11/2015).
[9] Depoimento de Antônio Firmino do Museu Sankofa da Rocinha, registrado em entrevista concedida à REMUS-RJ.

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